Alguns poemas de Amílcar Cabral

Este blogue pretende ser um lugar de divulgação da poesia guineense em português.


Resultado de imagem para amílcar cabral







































































































































Amílcar Lopes Cabral (1924-1973)


O poeta que apresentamos hoje merece uma apresentação especial por aquilo que representa para a Guiné-Bissau pois, para além de ser um dos poetas da primeira fase da literatura guineense,

considerada como a fase independentista e geralmente escrita em português, Amílcar Cabral é a figura mais proeminente da história da Guiné-Bissau, como ideólogo da independência conjunta de Cabo Verde e da Guiné, então colónias portuguesas e, por muitos, considerado o pai destas nações. 


Apesar de ter nascido em Bafatá, na Guiné Bissau, cresceu em Cabo Verde. Estudou agronomia em Lisboa, onde teve contacto com vários ativistas que defendiam a independência das colónias portuguesas. Em 1952, regressou ao seu país natal, intensificando, nos anos seguintes, a sua luta pela independência da Guiné-Bissau.


Inicialmente, Cabral tentou que o seu movimento de libertação conseguisse a independência por meios pacíficos, pedindo a Portugal para reconhecer a autodeterminação da Guiné e de Cabo Verde. No entanto, o indeferimento do pedido e o início de manifestações e acontecimentos sociais desencadeou uma luta armada.

Amílcar Cabral foi assassinado em 1973 , dois anos antes da proclamação da independência da Guiné (em 1975) na sua casa em Conacri, capital da Guiné, onde o partido tinha estabelecido a sua sede principal. 


Durante a sua carreira, destaca-se no cargo de secretário-geral do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) em 1956 e como fundador da Assembleia Nacional do Povo da Guiné em 1972, grande passo para a independência.


Segundo Couto e Embaló (2010: 94), a poesia de Amílcar Cabral enquadra-se na transição da época colonial para a época da luta pela libertação, apresentando temas intimistas e familiares, relacionados com a sua vida em Cabo-Verde, mas noutros poemas consegue-se entrever o futuro revolucionário (ibidem). 


Apresentamos, de seguida, alguns dos seus poemas e destacamos o facto de a letra do hino nacional da Guiné-Bissau ser da sua autoria. Foi escrita em 1963, durante a luta pela libertação.



Hino Nacional da Guiné-Bissau
Esta é a Nossa Pátria Bem Amada

Sol, suor, o verde e o mar,

Séculos de dor e esperança;

Esta é a terra dos nossos avós!

Fruto das nossas mãos,

Da flôr do nosso sangue:

Esta é a nossa pátria amada.

Coro:

Viva a pátria gloriosa!

Floriu nos céus a bandeira da luta.

Avante, contra o jogo estrangeiro!

Nós vamos construir

Na pátria imortal

A paz e o progresso!

Nós vamos construir

Na pátria imortal

A paz e o progresso! paz e o progresso!

Ramos do mesmo tronco,

Olhos na mesma luz:

Esta é a força da nossa união!

Cantem o mar e a terra

A madrugada e o sol

Que a nossa luta fecundou.

Coro
Letra de Amílcar Cabral; Composição Xiao He



Como curiosidade, deixamos, ainda, a referência de um filme cubano sobre o estadista, “Amilcar Cabral, O Pai da Nação”, veja aqui







Poemas de Amílcar Cabral


A minha poesia sou eu
… Não, Poesia:
Não te escondas nas grutas de meu ser,
não fujas à Vida.
Quebra as grades invisíveis da minha prisão,
abre de par em par as portas do meu ser
— sai…
Sai para a luta (a vida é luta)
os homens lá fora chamam por ti,
e tu, Poesia és também um Homem.
Ama as Poesias de todo o Mundo,
— ama os Homens
Solta teus poemas para todas as raças,
para todas as coisas.
Confunde-te comigo…
Vai, Poesia:
Toma os meus braços para abraçares o Mundo,
dá-me os teus braços para que abrace a Vida.
A minha Poesia sou eu.
Amílcar Cabral, em “revista Seara Nova”. 1946.

Eu sou tudo e sou nada…
Eu sou tudo e sou nada,
Mas busco-me incessantemente,
– Não me encontro!
Oh farrapos de nuvens, passarões não alados,
levai-me convosco!
Já não quero esta vida,
quero ir nos espaços
para onde não sei.
Amílcar Cabral, em “Emergência da poesia em Amílcar Cabral” (30 poemas).. [recolhidos e organizados por Oswaldo Osório]. Colecção Dragoeiro. Praia: Edição Grafedito, 1983.

Ilha
Tu vives — mãe adormecida —
nua e esquecida,
seca,
fustigada pelos ventos,
ao som de músicas sem música
das águas que nos prendem…
Ilha:
teus montes e teus vales
não sentiram passar os tempos
e ficaram no mundo dos teus sonhos
— os sonhos dos teus filhos —
a clamar aos ventos que passam,
e às aves que voam, livres,
as tuas ânsias!
Ilha:
colina sem fim de terra vermelha
— terra dura —
rochas escarpadas tapando os horizontes,
mas aos quatro ventos prendendo as nossas ânsias!
Amílcar Cabral (Praia, Cabo Verde, 1945).

Naus sem rumo
Dispersas,
emersas,
sozinhas sôbre o Oceano …
Sequiosas,
rochosas,
pedaços do Africano,
do negro continente,
as engeitadas filhas,
nossas ilhas,
navegam tristemente …
Qual naus da antiguidade,
qual naus
do velho Portugal,
aquelas que as entradas
do imenso mar abriram …
As naus
que as nossas descobriram.
Ao vento, à tempestade,
navegam
de Cabo Verde as ilhas,
as filhas
do ingente
e negro continente …
São dez as caravelas
em busca do Infinito …
São dez as caravelas,
sem velas,
em busca do Infinito …
A tempestade e ao vento,
caminham …
navegam mansamente
as ilhas,
as filhas
do negro continente …
– Onde ides naus da Fome,
da Morna,
do Sonho,
e da Desgraça? …
– Onde ides? …
Sem rumo e sem ter fito,
Sozinhas,
dispersas,
emersas,
nós vamos,
sonhando,
sofrendo,
em busca do Infinito! …
Amílcar Cabral, em “Emergência da poesia em Amílcar Cabral” (30 poemas).. [recolhidos e organizados por Oswaldo Osório]. Colecção Dragoeiro. Praia: Edição Grafedito, 1983.

No fundo de mim mesmo…
No fundo de mim mesmo
eu sinto qualquer coisa que fere minha carne,
que me dilacera e tortura …
… qualquer coisa estranha (talvez seja ilusão),
qualquer coisa estranha que eu tenho não sei onde
que faz sangrar meu corpo,
que faz sangrar também
a Humanidade inteira!
Sangue.
Sangue escaldante pingando gota a gota
no íntimo de mim mesmo,
na taça inesgotável das minhas esperanças!
Luta tremenda, esta luta do Homem:
E beberei de novo – sempre, sempre, sempre –
este sangue não sangue, que escorre do meu corpo,
este sangue invisível – que é talvez a Vida!
Amílcar Cabral, em “Emergência da poesia em Amílcar Cabral” (30 poemas).. [recolhidos e organizados por Oswaldo Osório]. Colecção Dragoeiro. Praia: Edição Grafedito, 1983.

(Poemas da juventude)
Eu lembro-me ainda dos tempos antigos,
Dos tempos sem nome, só teus e só teus …
Em que eras um homem de poucos amigos,
Metido contigo, contigo e com Deus …
Outro homem és hoje – e outro serás,
Bem forte na luta, em prol dos Humanos.
Na luta da vida – eu sei – vencerás,
Num Mundo de todos, sem Mal e sem danos.
– Amílcar Cabral, em “Emergência da poesia em Amílcar Cabral” (30 poemas).. [recolhidos e organizados por Oswaldo Osório]. Colecção Dragoeiro. Praia: Edição Grafedito, 1983.

Regresso
Mamãe Velha, venha ouvir comigo
o bater da chuva lá no seu portão.
É um bater de amigo
que vibra dentro do meu coração.
A chuva amiga, Mamãe Velha, a chuva,
que há tanto tempo não batia assim…
Ouvi dizer que a Cidade-Velha,
— a ilha toda —
Em poucos dias já virou jardim…
Dizem que o campo se cobriu de verde,
da cor mais bela, porque é a cor da esp´rança.
Que a terra, agora, é mesmo Cabo Verde.
— É a tempestade que virou bonança…
Venha comigo, Mamãe Velha, venha,
recobre a força e chegue-se ao portão.
A chuva amiga já falou mantenha
e bate dentro do meu coração!
Amílcar Cabral, em “Emergência da poesia em Amílcar Cabral” (30 poemas).. [recolhidos e organizados por Oswaldo Osório]. Colecção Dragoeiro. Praia: Edição Grafedito, 1983.

Sim quero-te…
Quero-te quando solitário cismo
na nossa vida,
nossa triste vida …
e optimista, esperançoso eu vejo
o meu futuro,
o teu futuro,
e uma vida melhor …
Quero-te quando a nossa melodia,
a nossa morna,
cantas docemente …
… e eu sonho, eu vivo, e eu subo a escada mágica
da tua voz serena,
e eu vou viver contigo!
Quero-te quando contemplo o nosso mundo,
um mundo de misérias,
de dor,
e de ilusões …
… e penso, e creio e tenho
a máxima Certeza
de que o romper da aurora
do “dia para todos”
não tarda … e vem já perto …
… E o mundo de misérias
será um mundo de Homens …
Eu quero-te! Eu quero-te!
Como o dia de amanhã! …
Amílcar Cabral, em “Emergência da poesia em Amílcar Cabral” (30 poemas).. [recolhidos e organizados por Oswaldo Osório]. Colecção Dragoeiro. Praia: Edição Grafedito, 1983.

Poema
Quem é que não se lembra
Daquele grito que parecia trovão?!
– É que ontem
Soltei meu grito de revolta.
Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos da Terra,
Atravessou os mares e os oceanos,
Transpôs os Himalaias de todo o Mundo,
Não respeitou fronteiras
E fez vibrar meu peito…
Meu grito de revolta fez vibrar os peitos de todos os Homens,
Confraternizou todos os Homens
E transformou a Vida…
… Ah! O meu grito de revolta que percorreu o Mundo,
Que não transpôs o Mundo,
O Mundo que sou eu!
Ah! O meu grito de revolta que feneceu lá longe,
Muito longe,
Na minha garganta!
Na garganta de todos os Homens
Amílcar Cabral, em “Emergência da poesia em Amílcar Cabral” (30 poemas).. [recolhidos e organizados por Oswaldo Osório]. Colecção Dragoeiro. Praia: Edição Grafedito, 1983.

Que fazer?!…
Eu não compreendo o Amor,
eu não compreendo a Vida
Mistérios insondáveis,
Formidáveis,
Mistérios que o Homem enfrenta
Mistérios de um mistério
Que é a alma humana …
Eu não compreendo a Vida:
Há luta entre os humanos,
Há guerra,
Há fome, e há injustiça imensa:
H á pobres seculares,
Aspirações que morrem …
Enquanto os fortes gastam
Em gastos não precisos
Aquilo que outros querem …
Eu não compreendo o amor:
Amamos quem sabemos impossível
Sentir por nós aquilo
Que tanto cobiçamos …
A Vida não me entende,
Eu não compreendo a Vida.
Quero entender o Amor,
E o amor não me compreende!
Amílcar Cabral, em “Emergência da poesia em Amílcar Cabral” (30 poemas).. [recolhidos e organizados por Oswaldo Osório]. Colecção Dragoeiro. Praia: Edição Grafedito, 1983.

Fontes:




https://pt.wikipedia.org/wiki/Esta_É_a_Nossa_Pátria_Bem_Amada


Couto, Hildo Honório do ; Embaló, Filomena. (2010). “Língua, literatura e cultura na Guiné-Bissau, um país da CPLP”. PAPIA, revista brasileira de estudos crioulos e similares [Em linha], nº 20. Brasília: Editora Thesaurus. [Consult. mai. 2019]. Disponível em http://abecs.net/ojs/index.php/papia/article/viewFile/341/362.