Outros poemas de Odete Semedo

Este blogue pretende ser um lugar de divulgação da poesia guineense em português.

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Em 7 de novembro de 1959, nasceu a poeta Maria Odete da Costa Semedo, em Bissau, capital da então colónia portuguesa, Guiné-Bissau.

Representante da nova geração, Odete Semedo foi a primeira poeta a publicar, em 1996, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), um livro de poesia, intitulado Entre o Ser e o Amar. Nesta obra, encontram-se dois grandes temas, comuns a esta geração: o primeiro, expresso de forma muitas vezes indireta, trata das desilusões vinculadas à pós-independência e de todas as agruras que envolveram o país em formação (o que resultou na guerra civil de 1998/1999); o segundo, diretamente, manifesta-se na busca de uma identidade, de um eu que se vê dissolvido em mundo de contradições. Os versos de Odete revelam não só a tensão que permeia o período de mudanças, mas, também, a inquietude própria do individuo diante da existência. Em cada verso, evidencia-se o clamor de uma alma cindida entre as necessidades práticas do mundo material e o universo lírico de sua poesia: é a mulher do dia-a-dia debatendo-se com o dia-a-dia das reflexões metafísicas.

Um dos poemas mais conhecidos de Odete Semedo é "Em que língua escrever", que poderá ler no Post 1. De seguida, apresentamos outros poemas de Odete Semedo.



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POEMAR de Odete Semedo (Tony Tcheka também tem um poema com o mesmo título e, ainda, há versão cantada em https://www.youtube.com/watch?v=92Q6xgWJBTk

Poemar
Poemar é amar o mar
Poemar é revestir o ser
Com o próprio pensamento
É trazer à superfície
O subconsciente
É ser vidente
É ser viandante
É amar a dor
E dar calor
Ao frio da noite.
Poemar é dar prazer ao ser
É estar contente
Por poder amar
E poemar é amor
Poemar é amar
Quando ao luar
O mar e a mente se entrelaçam
Quando a dor e o calor se confundem...
Poemar é amor
É amar
É mar

E é dor também


Odete Semedo, Entre o ser e o amar. Guiné-Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996.


A kontrata começara
O grande lugar de rónia
tronco de um velho poilão
aguardava a cerimónia
que abriria o encontro

Os irans chegaram à hora prevista
cada um representando djorson
uns podiam falar
estava à vista
outros não
era a lei entendida por todas
e ninguém devia porfiar

Bissau tomou a palavra
era a anfitriã
kumbu da mufunesa
antro de desespero

Fazia tempo
não sabiam o que era
um pingo de cana derramado
manta e esteira
Fazia tempo não sabiam
o que era ser amado
pelos filhos
Fazia tempo
não sabiam o que era
punhado de arroz
e água fria no chão

Que coisa atroz
tão grande mufunesa
filhos seus corriam
de um lado para outro
Bissau era culpada: concluíam
Não criou bem os seus filhos
largou-os ao léu
mal abençoados
vagueando feito rastilhos
debaixo de sol e serunu

Esses filhos desgraçados
porfiaram as suas raízes
renegaram a verdade
apostaram na mentira
na calúnia e lobo
fez do seu manjar
outro lobo
Odete Semedo, No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.


As minhas lágrimas
As lágrimas
escapuliram
esboçaram
no chão do meu rosto
um fio de mágoa profunda
queimando
bem fundo

Nenhum grito...
nenhum gemido...
palavra nenhuma
letra alguma
jamais traduziu
tanto sofrer
os olhos sentiram
a minha gente viu
E eu?
E eu?
Odete Semedo, No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.


Cogito, ergo sum
Pensa não fala!
aposta na tua existência
Falando... podes quebrar
da vida o encanto
fazer do inferno um teu canto
e inglória
a folia alheia

Continua pensando
segue o exemplo do Vivêncio
filho de Prudêncio
jamais a sua voz se fez ouvir
senão pela boca alheia

Não fala... que a voz ecoa!
não grita... que a garganta irrita
e de rouquidão se inquieta
Não chora... que de soluços
podes morrer
Não discorda... que a corda estrangula

Vai segue o teu caminho
virtual que seja
Poupa a tua fala... pensando sempre
e vive calma(mente)

na paz da discórdia
Odete Semedo, No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.



Dores e desaires dos caminhantes
Que palavras
poderão espelhar este desaire
ensinaram-me o abc
deram-me a conhecer
letras e sílabas
sentenças e provérbios
ditos e cantigas

Ensinaram-me
que as letras
que as palavras
traduzem
reproduzem
encantam
contam
pensamentos
intentos
devaneios
e sonhos
Para tanta aflição expressar
esta dor queimando
a minha alma
o nosso infortúnio
Este punhal...
cravado no meu chão
maldição de que deuses
para dilacerar
as estranhas da gente?
como aplacar tanta
e tamanha dor
ninguém me desvendou
tal segredo.
Odete Semedo, No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.



Do prenúncio aos factos
tudo virou fumaça
tudo foi virando nada
o feito em coisa alguma
bianda de homens sem rosto

Um mundo de promessas
foi deixando para trás
caminhos tortuosos
abrindo-se em narinas
de outros cheiros
não os da podridão

dos falsários
Odete Semedo, No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.



E fez um poema sem palavras
Numa manhã cinza
com nuvens imitando
 gente chuva
 chorando...
quis fazer um poema,
um poema raiz dos que marcam época
invocar as nharas
e as sinharas
chorar o prenúncio
que marcou o meu povo
denunciar o desequilíbrio

Nessa manhã
- ainda -
de lápis na mão
quis deixar no poema
figura de gente
vivente sem encanto
  dos ímpios
o sangue derramado
algures...
que horror:
nasci em tempo de paz!

Na mesma manhã
- que dia teimoso -
sol tímido e mimoso
serkando a chuva
a intenção era fazer
  poemas
para não adia a palavra
com ecos do pranto
trasnformados em canto
e gargalhadas alegres
de mantenhas para crianças
 ... que desilusão:
nem uma palavra apontei

E apenas mais um sono
Odete Semedo, No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.



E ninguém podia crer
Entre a dor que sinto
e o que pressinto
na alma da minha terra
que caminho trilhar?

Entre a dor que sinto
entre o ser e o estar
venceram a ganância
a violência
e o desespero
E nós?
não acredito
no que os meus olhos vêem
Odete Semedo, No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.



Eu e a poesia
Eu e a poesia
A confissão
O prazer
O gosto de dizer
Sem reprimir
O prazer de dar
O que se quer
A viagem segura
Num mundo incerto
A magia do som
Da música, do ritmo
O prazer da viagem
A visão da natureza
Pura ou não
A Providência sempre
Ou nunca presente
Poesia amor
Construção

Fuga e reencontro
Odete Semedo, Entre o ser e o amar. Guiné-Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996.




Não disse nada
Falei da língua
Da míngua
Da letra
(So)letrei a minha nostalgia
Lendo pasmado
Nos olhos desmesurados
O infinito
Odete Semedo, Entre o ser e o amar. Guiné-Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996.



O cantor da alma sentiu o monstro... e disse:
seu eu pudesse...
caminhar entre as nuvens
gritar o meu canto
banhar-me
em teu pranto

Se eu pudesse
Ser carpideira
djamur as minhas mágoas
engodar o desassossego
perder-me no horizonte
libertar o grito

Se eu pudesse...
vencer esta guerra
entre mim e o nada
abrir as asas
da minha desventura
remover a terra vermelha
descobrir o mistério do ser...
Ah, se eu pudesse...!
Odete Semedo, No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.



O teu mensageiro
Não te afastes
aproxima-te de mim
traz a tua esteira e senta-te

Vejo tremenda aflição no teu rosto
mostrando desespero
andas
e os teus passos são incertos

Aproxima-te de mim
pergunta-me e eu contar-te-ei
pergunta-me onde mora o dissabor
pede-me que te mostre
o caminho do desassossego
o canto do sofrimento
porque sou eu o teu mensageiro

Não me subestimes
aproxima-te de mim
não olhes estas lágrimas
descendo pelo meu rosto
nem desdenhes as minhas palavras
por esta minha voz trémula
de velhice impertinente

Aproxima-te de mim
não te afastes
vem...

senta-te que a história não é curta
Odete Semedo, No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.



O velho poilão

O tempo fez-me vergar
E as minhas raízes saltar
Agarro ao que de mim resta
E tento reconhecer a minha geração
De extrema solidão
No meu reino

Tenho pesadelos
Tractores de dentes aguçados
Ávidos lenhadores
De machado em punho
Meus oradores
Miram o meu tronco
Carcomido pelo tempo
À espera da queda fatal
Angustiado sonho com os belos tempos
Vejo os meus braços verdes
O meu tronco firme
Ostentando uma cabeça frondosa
De cabelos encarapinhados
Simulando perfis ocos
De rostos apinhados

Ainda recordo
De sombras que dei
Histórias de amor, noites de fogueira...
Quantas não assisti?
Fui símbolo de amor proibido
Refúgio de namorados
Hoje é isto o que de mim resta
Tudo que em mim presta
O tempo levou
E o chão aprovou

Mas não choro
Odete Semedo, Entre o ser e o amar. Guiné-Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996.



Perdidos, desnorteados
decapitado
o meu corpo rola
e deambula pelo mundo
os meus membros se entrelaçaram
buscando protecção fora do tempo

O meu tronco sangrando quieto
protrado
num terra sem chão
lembra uma res
abatida

A minha cabeça
o meu corpo desbaratado
os meus membros entrelaçados
minha Guiné
minha terra
porra...
rolam... rolam e deambulam

em movimentos incertos
Odete Semedo, No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.



Poemar
Poemar é amar o mar
Poemar é revestir o ser
Com o próprio pensamento
É trazer à superfície
O subconsciente
É ser vidente
É ser viandante
É amar a dor
E dar calor
Ao frio da noite.
Poemar é dar prazer ao ser
É estar contente
Por poder amar
E poemar é amor
Poemar é amar
Quando ao luar
O mar e a mente se entrelaçam
Quando a dor e o calor se confundem...
Poemar é amor
É amar
É mar

E é dor também
Odete Semedo, Entre o ser e o amar. Guiné-Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996.



Por isso... silêncio!
Silêncio!
Vem aí o grande bandlulho
cabeça de aço
gigante das sete gargantas
Desembarcou
na terra prometida:
nos tentáculos
pequenos obstáculos
nos pés de barro
botas de melaço
para línguas de pelica

De bandulho vazio
quis encher a pança
com poupança
Mais quilos arrecadar
era a esperança
engordar era o sonho
do gigante
das sete gargantas

Noite vai
dia vem
cresceu a pança
e as gargantas
eram já quantas?
perdeu-se a conta
e dos tentáculos também

Tomou-se surdo
aumentou de peso
de olhos
pés enormes
corpo disforme
vai o gigante
tentar um passo
dois
e três
e era uma vez...
partiram-se os pés
do gigante

das sete gargantas
Odete Semedo, No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.





Silhueta da desventura
Sou a sombra dum corpo que não existe
Sou o choro desesperado
Sou o eco de um grito articulado
Numa garganta sem forças
Sou um ponto no infinito
Silhueta da desventura

Perdida neste espaço
Vagueando... finjo existir
Insistem chamar-me criança
E eu insisto ser
A esperança do incerto

O meu tantã é de outros tempos
A melodia que oiço
É o crepitar de chamas
Confundindo-se com o roncar da fome
E o chão onde piso
É uma ilha de fogo

A minha nuvem é a fumaça
Da bala disparada
Gotas salgadas orvalham
O meu pequeno rosto
Enquanto choro

Na esperança do incerto

Odete Semedo, Entre o ser e o amar. Guiné-Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996.


Tanta súplica evocou os Irans
Tanta súplica e chamamento...
tamanha invocação
tantas fantasias desfeitas
pela dor
irans e defuntos se reuniram
não resistindo ao veneno
de tantos corpos perdidos

Há culpados...
Que não fiquem mudos
nem impunes
pois o concílio vai reunir-se
os irans vão falar
é hora de ouvir a nossa djorson
e os nossos defuntos

Irans de Bissau
de Klikir a Bissau bedju
de N’ala e de Rênu
de Ntula e de Kuntum
de Ôkuri e de Bandim
de Msurum
Varela e do Alto Krim
de Klelé e de Brá

As sete djorson de Bissau
estarão presentes
as almas das katanderas
estarão presentes
Testemunharão o acto
os irans de João Landim
de Bula e de Farim
Os de Geba e Cacheu
Wendu Leidi e Bruntuma
não faltarão

Os irmãos de Pecixe e de Jeta
juntarão os seus caminhos
com os de Caió e Calequisse
Os de Canchungo e Batucar
tomarão a bênção em Bassarel
Cô será o ponto de encontro
dos que sairão de Bula e Binar

Hóspedes de Bolor e de Bufa
serão recebidos
mas não terão palavra
nem os de Banta
de Bessassema
Cacine e de Caur
e nem as velhas almas de Kansala
É assim a lei
no consílio dos irans
Será aceite por todos?

Odete Semedo, No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.
Voz
Olhos que falam por mim
Com voz de benjamim
Mãos de gestos seguros
Perturbando a insegurança
Da mente
Do espírito
E da alma desventurada
Pés que caminham
A passos largos
Desafiando o tempo
Caminhando...
A passos largos e firmes
Olhos
Mãos
Pés
Olhos meus
Sonhos teus
Que firmes
Descompassam
E fogem à desventura
Olhos, pés, mãos
Mãos e olhos
Num conjunto seguro
Insurgem

No desassossego do ser

Odete Semedo, Entre o ser e o amar. Guiné-Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996.
in http://www.elfikurten.com.br/2016/07/odete-costa-semedo.html

E o poeta falou

Falei da ambição
dos homens
era já dia
falei da paz
do grito de Angola
do homem sem rosto
da criança que virou velho

Falei do homem-bicho
outros falaram do bicho-homem
essa coisa sem cabeça
nem coração
outros e mais outros
falaram do mundo-cão
onde a ambição
fala mais alto que o coração

Clamei pelas crianças de Moçambique
vi-me nas ilhas sem nome
chorando a angústia alheia
enquanto isso
o bicho-homem
vestido de homem-bicho
caminhava para a minha moransa*

Esse homem sem cabeça
coração na planta dos pés
que a todos leva ao sepulcro
a sete pés
debaixo da terra
pisou o meu chão
calcou a minha gente
não precisava de um pelotão
apenas ter ambição nos olhos
ódio nas mãos
e tocar o bombolon** da morte

*Moransa - aglomerado de casas pertencente a uma família extensa
**Bombolon - instrumento de percussão


Odete Semedo, No Fundo do Canto, Belo Horizonte: Nandyala, 2007.
http://veronicabenesi.blogspot.com/2008_05_01_archive.html

Ilhas sem nome
Meus olhos
Ilhas sem nome
Maré alta a transbordar no oceano
Ondas salgadas
Que insuportam o acordar
Vazias de vida
Meus olhos
Olhos sem nome
Precipitam e atentam
Contra o impávido
Meus olhos, nossos olhos
Ilhas sem nome
Aprisionados pelas mãos, pelos
Soltam raios
dedos
Reconhecem outros olhos
E inacreditam esqueletos ousados
Abandonados pela carne
Espreitando
Meus olhos
Nossos olhos, todos os olhos
Ilhas sem nome
Ganharam um nome
Passaram a ser
Olhos-que-já-não-acreditam
Odete Semedo, Entre o ser e o amar. Guiné-Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996.

Flor sem nome
Flor sem nome 
Em chão árido e seco 
No deserto envolvente 
Um fundo verde 
Da esperança longínqua… 
Eu so nessa flor
A florir longe de pensamentos 
Longe de sentimentos 
E ao longe 
Lágrimas cobrindo rostos 
Essa flor sou eu! 
Sem nome, sem cheiro 
A beira mar 
Colorida 
Sobrevive também pelo verde
Odete Semedo
In https://www.aelg.gal/resources/publications/12526604314112002_06.pdf

Heroína do teu conto
Quero ser heroína 
Do conto que inventares 
Que firme segue o seu destino 
Quero ser uma mortal 
Guiada pelo teu poder 
E pela tua voz

Quero ser uma semi-deusa 
E vencer os obstáculos 
Que tu teceres 
Escapar das nuvens e do próprio sol

Quero ser a deusa lua no teu conto 
Acompanhar as crianças 
Nas suas fantasias 
E no sonho seguir os seus desígnios

Quero ser a heroína do teu conto 
Ou apenas um verso do teu canto
Odete Semedo
In https://www.aelg.gal/resources/publications/12526604314112002_06.pdf

Nota biográfica: Ver post 1.

Fontes:
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/Maria-Odete-da-Costa-Semedo-uma-alma-inquieta-da-Guine-Bissau/12/11301
http://www.elfikurten.com.br/2016/07/odete-costa-semedo.html
https://www.aelg.gal/resources/publications/12526604314112002_06.pdf
http://veronicabenesi.blogspot.com/2008_05_01_archive.html
http://triplov.com/guinea_bissau/odete_semedo/poemas/djiu.htm.