A poesia de Domingas Samy

Este blogue pretende ser um lugar de divulgação da poesia guineense em português.

Hoje apresentamos alguns poemas de Domingas Samy, escritora mais conhecida pela sua escrita em prosa.



Desejada Paz

Porque colorir o mundo
de: agitação,
         terror
              sangue
                       fogo
                             dor e
                                     padecimento da
                                                   humanidade?
Porquê?
— Todos nós amamos e sofremos
— porque não juntar
mãos brancas, negras e amarelas
para construir um mundo multicor e alegre
como vozes das crianças

Nós,
Testemunhas da cicatrização das feridas
dos corações heróis
— Queremos que o Mundo
Seja iluminado pelo fulgor dos olhos infantis
— Queremos viver
na alegria das crianças que nascem

— Queremos viver
de uma maneira simples
fazendo as coisas mais naturais e belas
como a própria natureza,
Humanas,
—Isto é a Paz...
O direito de ser simples,
          nascer,
                  respirar,
                         amar e
                                morrer.

Hoje, como nunca
sonhamos como nunca
com a Paz
como o inocente sonha com a razão em fuga

Hoje, como nunca
Desejamos como nunca
A Paz
como guerreiro no deserto deseja Água.


Filho de África

Tu ouviste chorar a África
          e quiseste chorar;
porquê irmão?
Tu viste o mar sangrento
          e quiseste atravessá-lo a nado,
porquê?
Tu viste a mata espinhosa
          e quiseste atravessá-la,
porquê?
Tu viste arder os corações humanos
           e quiseste queimar o teu,
porquê mano?
— Meu pequeno! — porque só através
            do mar sangrento,
                     da ignição dos corações humanos,
                               da mata espinhosa
vi o futuro luminoso
da nossa querida Mãe.

Domingas Samy, Agosto de 1979
URSS, Varoneje



Recordação demolida

Gostaria de guardar sempre comigo,
gostaria de guardar na minha mente 
tua recordação branca 
como a neve adormecida na floresta 
Gostaria que ela ressuscitasse em cada Inverno 
acariciando os meus olhos cobertos de luto. 

Mas tu, 
Meu Amor, 
inocentemente borraste esta recordação 
com as tuas palavras da cor da tinta de china 
Demoliste esta recordação 
com as tuas palavras duras como mármore 
Queimaste esta recordação 
com as tuas dolorosas e fogosas palavras. 
Inocentemente demoliste esta recordação 
com as tuas duras e verdadeiras palavras. 
Domingas Samy, Agosto 1980
 Antologia Poética da Guiné-Bissau

Porque choras mamã?

Porquê?
Porque choras mamã?
Porque entristeceram teus filhos?
Porque tudo escureceu?
Porque no jardim entristeceram as flores?
Porque estão mortos?
Porquê mamã?
Responde Mamã!

Porque me sinto esquisita hoje?
E porque choras Mamã?
Não chores mais!
— Responde!
Porque choras?

Num fio de voz
mas carinhosamente, respondeu:
— Querida minha!
Os Imperialistas mataram teu irmão mais velho.

Tudo se escureceu
e no meio dessa escuridão
e silêncio,
soaram como que
vozes infantis:
— Não chore Mamã!
— Não chore!
— Cabral não morreu.
— Ele está sempre connosco:
hoje, amanhã, sempre
porque ele é luz
e guia do nosso Povo.

Domingas Samy, Janeiro de 1979
URSS, Varoneje


Arde o coração!

Sentada na margem
do Mar azul,
lágrimas nos olhos,
contemplava a água límpida
e sonhava alcançar
um mar transparente coberto de rosas.
Ao meu redor
reinava um silêncio de morte,
só se ouvia o barulho das ondas
Foi entre estas ondas
que tu apareceste
como que em sonho
Senti as tuas mãos matinais
limparem estas duras lágrimas
Tu me prometeste
o mar transparente coberto de rosas
e eu acreditei
Mas em vez disso
deste-me a floresta fogosa
E eis que cada minuto
juntamente com a floresta
queima o meu coração.

Domingas Samy, abril de 1979
URSS, Varoneje

A casa de todos nós

Todos nós.
Brancos, Negros e Amarelos
Somos flores de matizes variados no grande
Jardim,
Cujo ventre
Ávido de riqueza
Torna cegos os nossos olhos e
Mata a nossa consciência 
Enquanto a calamidade ecológica
Não conhece 
Nem os ricos,
Nem os pobres,
Não sabe bater à porta
Nem pedir licença para entrar.

Salvemos o nosso frágil Planeta
Salvemos a nossa Casa,
Restituindo-lhe 
O seu rosto suave outrora acolhedor
Tal como o das flores ao nascer do dia.

Salvemos o nosso Berço
Em que se refugiavam os espíritos desesperados.
Salvemos o Futuro dos nossos filhos
E preservemos a amenidade das nossas vidas.

Só a nossa tomada de consciência
Pode acorrer ao nosso ambiente
E salvá-lo do pesadelo.

Só a nossa atenção a todos os pontos do Planeta,
Como moscas em torno das vacas,
Pode restituir-lhe a sua beleza agressiva
E a sua pureza de outros tempos.
Domingas Samy
in Tribune Libre, 1992 (tradução reproduzida no manual escolar “Horizontes”, de Língua Portuguesa para a 9ª Classe, num projeto de Cooperação entre República da Guiné-Bissau e a Fundação Gulbenkian) 
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quadro do jovem pintor guineense Kevin Lima


Nota biográfica:
Domingas Barbosa Mendes Samy, «Mingas», nasceu em Bula, sector da legião de Cacheu, em 2 de Janeiro de 1955. Fez os seus estudos primários em Gabú, região local, mais tarde tendo frequentado o Liceu Nacional Honório Barreto, depois Kwame N’Krumah. Depois de concluir o liceu no ano lectivo de 1975/76, beneficiou de uma bolsa de estudos para a URSS a fim de efectuar os seus estudos universitários, que veio a concluir com a licenciatura no ano de 1981, em Filologia Germânica.
Após o regresso ao país, trabalhou no Liceu Nacional Kwame N’Krumah como professora da língua francesa e ao mesmo tempo presidente do Conselho Técnico-Pedagógico. Actualmente é funcionária do secretariado do C. C. do PAIGC, directora da Biblioteca Nacional do Partido.
Escreve em quatro línguas diferentes (português, francês, russo e crioulo) e é considerada pioneira na prosa, mais precisamente no conto (Couto e Embaló, 2010: 110). A sua poesia em português está representada apenas com cinco poemas em “Antologia Poética da Guiné-Bissau”. Os seus primeiros versos foram escritos e publicados em russo nas páginas do Jornal de Varóne (cidade onde estudou), «Molodoi Kommunar» (jovem comunardo) e posteriormente na revista «Vida Soviética» em 1982 e 1984.
Durante os seus estudos, «Mingas» participou frequentemente em saraus de poesia. Em 1983, começou a participar nas conferências internacionais dos escritores da África e da Ásia.
É também secretária da UNAE (União Nacional de Artistas e Escritores da Guiné-Bissau) e membro fundador da «LEC» (Liga dos Escritores dos «Cinco»).

Fontes:

http://triplov.com/guinea_bissau/mingas/poemas/index.htm
Couto, Hildo Honório do ; Embaló, Filomena. (2010). “Língua, literatura e cultura na Guiné-Bissau, um país da CPLP”. PAPIA, revista brasileira de estudos crioulos e similares [Em linha], nº 20. Brasília: Editora Thesaurus. [Consult. mai. 2019]. Disponível em http://abecs.net/ojs/index.php/papia/article/viewFile/341/362.