Este
blogue pretende ser um lugar de divulgação da poesia guineense em português.
Com a independência do país, surge uma vaga de jovens
poetas, entre os quais se destacam Tony Tcheka (António Soares Lopes), Agnelo Regalla, José Carlos Schwarz, Hélder Proença,
Francisco Conduto de Pina, Félix Sigá, cujas obras impregnadas ainda de espírito revolucionário, manifestam um caráter social. O colonialismo, a escravatura e a repressão são temas desses autores que, no pós- independência imediato, apelam para a construção da Nação e invocam a liberdade (Embaló, 2004).
Francisco Conduto de Pina, Félix Sigá, cujas obras impregnadas ainda de espírito revolucionário, manifestam um caráter social. O colonialismo, a escravatura e a repressão são temas desses autores que, no pós- independência imediato, apelam para a construção da Nação e invocam a liberdade (Embaló, 2004).
Tony Tcheka (Antonio Soares Lopes) nasceu na República da Guiné-Bissau a 21 de dezembro de 1951. Trabalha como jornalista desde 1975 e é hoje um dos poetas mais famosos de seu país. Os seus poemas apareceram em várias antologias de poesia na Guiné-Bissau, antes da publicação de estreia "Noites de insónia na terra adormecida", de 1987, publicado em 1996. O tema principal da sua poesia, assim como do seu trabalho como jornalista, é um confronto crítico com a história, a política e a sociedade de seu país.
Veja o seguinte vídeo em que o poeta declama um dos
seus poemas, “Cores e Sabores".
http://videos.sapo.pt/Q8Cb9aDuRprwEZnB9Ml1
De seguida, alguns dos seus poemas.
TERRA TÍSICA
terra sahel
vento
cinzento
esboçando
voos amargos
movediços
esperança a esvaiar
das alturas do futa djalon
vento
cinzento
esboçando
voos amargos
movediços
esperança a esvaiar
das alturas do futa djalon
-o bombolom
lamina ventos
anuncia eventos
repica forte
e geme
no corpo
do vento saheliano
lamina ventos
anuncia eventos
repica forte
e geme
no corpo
do vento saheliano
dores saheis
em contravento
em contravento
a seca
é um gemido ululante
sublimado
nas cordas adelgaçadas
do nhanhero griot
é um gemido ululante
sublimado
nas cordas adelgaçadas
do nhanhero griot
a chuva
que o vento
levou
mora no imaginário
sumido
de um choro
sem tambores
sem cana sem
lágrimas
que o vento
levou
mora no imaginário
sumido
de um choro
sem tambores
sem cana sem
lágrimas
o
vento
deixou-nos
a ânsia gotejando
no pulmão da terra tísica
deixou-nos
a ânsia gotejando
no pulmão da terra tísica
http://www.triplov.com/guinea_bissau/tony_tcheka/poemas/
POVO ADORMECIDO
Há chuvas
que o meu povo não canta
Há chuvas
que o meu povo não ri
que o meu povo não canta
Há chuvas
que o meu povo não ri
Perdeu a alma
na parede alta do macaréu
na parede alta do macaréu
Fala calado
e canta magoado
e canta magoado
Vinga-se no tambor
na palma e no caju
mas o ritmo não sai
na palma e no caju
mas o ritmo não sai
Dobra-se sob o sikó
como o guerreiro vergado
cala o sofrimento no peito
como o guerreiro vergado
cala o sofrimento no peito
O meu povo
chora no canto
canta no choro
e fala na garganta do bombolon
chora no canto
canta no choro
e fala na garganta do bombolon
Grei silêncio
quebrado
nas gargalhadas de Kussilintra
em quedas de água
moldando pedras
esfriando corpos
esculpidos
no corpo do bissilão
quebrado
nas gargalhadas de Kussilintra
em quedas de água
moldando pedras
esfriando corpos
esculpidos
no corpo do bissilão
http://www.triplov.com/guinea_bissau/tony_tcheka/poemas/
NOSTALGIA
Cinzento nicotina
serpenteia o meu quarto
argola o tempo que não passa
serpenteia o meu quarto
argola o tempo que não passa
Tu
não apareces
nada acontece….
nada acontece….
O som sobe em 33 rotações
a voz sofrida de Ottis Reding
sustenta o calor de um canto soul
a voz sofrida de Ottis Reding
sustenta o calor de um canto soul
Emerges de uma nota de piano
por momentos bailas
na circunferência de uma bola de fumo
que se esquiva pela persiana
por momentos bailas
na circunferência de uma bola de fumo
que se esquiva pela persiana
Fica o som dilatado do sax
a dar passagem a Ottis
a sentenciar “time is over”
a dar passagem a Ottis
a sentenciar “time is over”
Nada acontece…
Nicotino o espaço que se fecha
sobre mim sem ti
http://www.triplov.com/guinea_bissau/tony_tcheka/poemas/
CONCERTO DE “DJUNTA MON”
I
A dor encosta-se a mim
abraça-me forte
espalha-se pelo corpo
em glândulas de fome
abraça-me forte
espalha-se pelo corpo
em glândulas de fome
Enfermo
declino o convite
para a grande festa da liberdade
Estou no meu tempo
no meu espaço
na minha tabanca
onde festa
não cabe
Grassa o choro
a doença
crianças morrendo
dia a dia
hora a hora!
declino o convite
para a grande festa da liberdade
Estou no meu tempo
no meu espaço
na minha tabanca
onde festa
não cabe
Grassa o choro
a doença
crianças morrendo
dia a dia
hora a hora!
II
Não…
Não vou a Berlim
ver o muro em pedaços
Viajo sim no olhar desesperado
do menino moçambicano
nicando a raiz seca
que desistiu de crescer
para morrer na boca pequena
Não vou a Berlim
ver o muro em pedaços
Viajo sim no olhar desesperado
do menino moçambicano
nicando a raiz seca
que desistiu de crescer
para morrer na boca pequena
Na África-tabanca
morre-se
aos pedaços
e
pedaços que não são saudades
da minha herdade
deixo-os fluir ao vento
até que a história
faça a contrição
do tempo madrasta
morre-se
aos pedaços
e
pedaços que não são saudades
da minha herdade
deixo-os fluir ao vento
até que a história
faça a contrição
do tempo madrasta
III
Mas se amanhã levantarem o cerco
que nos tolhe o sol
prometo
que
levarei os nossos cikós
os nossos tambores
os nossos djidius
que nos tolhe o sol
prometo
que
levarei os nossos cikós
os nossos tambores
os nossos djidius
e
com os vossos pianos e saxs
dançaremos na voz de Sinatra Pavaroti
Nina Simone e Milles Davies
no cume da estátua da liberdade
com os vossos pianos e saxs
dançaremos na voz de Sinatra Pavaroti
Nina Simone e Milles Davies
no cume da estátua da liberdade
O
batuque terá o sabor
das pedras ontem feitas muro
e de cada pedaço da vergonha caída
nascerá um tambor para o concerto
de djunta-mon!
das pedras ontem feitas muro
e de cada pedaço da vergonha caída
nascerá um tambor para o concerto
de djunta-mon!
http://www.triplov.com/guinea_bissau/tony_tcheka/poemas/
Zé da Tugalândia
chamavam-lhe Zé
Zé sapateiro
Zé tuga
por vezes sô Zé
Zé sapateiro
Zé tuga
por vezes sô Zé
homem da Tugalândia
nhu Zé de bissau-velho
homi grandi
nhu Zé de bissau-velho
homi grandi
Ih!!!
Garandi nan!!!
ninguém se lembra quando chegou
diz-se que veio num navio-motor
sobre ondas adamansadas
diz-se que veio num navio-motor
sobre ondas adamansadas
vinha só
maleta de cartão na mão
duas, ou três palavras
eram o seu discurso
uma era certamente “senhor”
senhor sem cor
sem temor
e sem idade
maleta de cartão na mão
duas, ou três palavras
eram o seu discurso
uma era certamente “senhor”
senhor sem cor
sem temor
e sem idade
um gesto feito tique
- um leve inclinar da cabeça
dispensava palavras vãs
dimensionava a grandeza
de homem de trabalho
- um leve inclinar da cabeça
dispensava palavras vãs
dimensionava a grandeza
de homem de trabalho
bissau velho acordava
chamado pelo seu toc-toc
calcando pregos
cozendo rijos nós
fechando jambutas famintas
para basófias caminhadas na praça
ou bailes suarentos de fins de semana
chamado pelo seu toc-toc
calcando pregos
cozendo rijos nós
fechando jambutas famintas
para basófias caminhadas na praça
ou bailes suarentos de fins de semana
nos novos tempos
com as naus fazendo
o caminho do regresso
levando-lhe mulher, filhos, netos
e clientes
e amigos
nem um queixume
nem um murmúrio
se ouviu
nem mesmo quando a doença
a ele se encostou
com as naus fazendo
o caminho do regresso
levando-lhe mulher, filhos, netos
e clientes
e amigos
nem um queixume
nem um murmúrio
se ouviu
nem mesmo quando a doença
a ele se encostou
assim era
sô Zé
conheceu sargentos e comandantes
ingratos e devedores
administradores, impostores
nunca recebeu governadores
nem medalhas, nem diplomas
ingratos e devedores
administradores, impostores
nunca recebeu governadores
nem medalhas, nem diplomas
tinha dois amores
guiné
paixão sentida
cozida com nós fortes
a dez dedos
guiné
paixão sentida
cozida com nós fortes
a dez dedos
e
Tugalândia
eternamente a sua metrópole
madrasta
sô Ze de Bissau-velho
homi grandi
garandi nan!
Tugalândia
eternamente a sua metrópole
madrasta
sô Ze de Bissau-velho
homi grandi
garandi nan!
Bissau
http://www.triplov.com/guinea_bissau/tony_tcheka/poemas/
Agosto, meu país
Agosto
de evento
& ventos
tem
ventos
trazendo
nuvens
negras
aniladas
cercando
a cidade
descendo
sobre
nós
de evento
& ventos
tem
ventos
trazendo
nuvens
negras
aniladas
cercando
a cidade
descendo
sobre
nós
Vento
tornado
vento
macho
sacudindo
o tempo
mexendo
remexendo
indo
e
vindo
e
ven tan do
tornado
vento
macho
sacudindo
o tempo
mexendo
remexendo
indo
e
vindo
e
ven tan do
enovelando
abrindo
as portas
d’água
abrindo
as portas
d’água
natureza
emocionada
dançando
- a
dança
do vento
no ritmo
marcado
pelos
trovões
emocionada
dançando
- a
dança
do vento
no ritmo
marcado
pelos
trovões
Agosto
é
corpo
bronze
de
mulher
feito
espelho
pela
água
da
chuva
abundante
em gotas
bojudas
é
corpo
bronze
de
mulher
feito
espelho
pela
água
da
chuva
abundante
em gotas
bojudas
Agosto
é
chuva
indomada
beliscando
as
casas
de barro
embebendo
a cobertura
de colmo
que logo
pinga
de penúria
é
chuva
indomada
beliscando
as
casas
de barro
embebendo
a cobertura
de colmo
que logo
pinga
de penúria
Agosto
é
chuva
grossa
sobre
a terra
abrindo
piscinas
para menino
de brinquedo
de lata
nadar
brincar
e
rolar
e
sonhar
e
ser
é
chuva
grossa
sobre
a terra
abrindo
piscinas
para menino
de brinquedo
de lata
nadar
brincar
e
rolar
e
sonhar
e
ser
http://www.triplov.com/guinea_bissau/tony_tcheka/poemas/
Tchico Tem-Tem
Tchico Tem-Tem
da Nha Tchibita da Tchada de Burro
da Nha Tchibita da Tchada de Burro
Tchico Tem-Tem
na bola de trapos
vida tem-tem
que nada tem
na bola de trapos
vida tem-tem
que nada tem
Entre quedas
e cambalhotas
Tchico foi na onda
- chegou à terra-branco…
encalhou nos becos do Rossio
e cambalhotas
Tchico foi na onda
- chegou à terra-branco…
encalhou nos becos do Rossio
Montou bureau d`affaires de nada
… vende histórias passadas e inventadas
Sorrisos à borla
e receituários por haviar
são marcas da casa
… vende histórias passadas e inventadas
Sorrisos à borla
e receituários por haviar
são marcas da casa
As esquinas e as ruelas lisboetas
desembocam sempre no Tem-Tem
fundibulário
desembocam sempre no Tem-Tem
fundibulário
Veste a fadiga
de sossego
com histórias de manga curta
nada que faça suar
de sossego
com histórias de manga curta
nada que faça suar
Tchico
brejeiro
cara erguida
mãos nos bolsos
vazios
assobiadelas marotas
Jeito cultivado
entre
quedas e cambalhotas
para espantar a fome
nos becos do rossio.
brejeiro
cara erguida
mãos nos bolsos
vazios
assobiadelas marotas
Jeito cultivado
entre
quedas e cambalhotas
para espantar a fome
nos becos do rossio.
http://www.triplov.com/guinea_bissau/tony_tcheka/poemas/
Mulher da Guiné
Intimas o espaço
frondosa
palmeira verde
desafias o arco-íris
nas tuas cores
de mulher
caminhas suave
navegando
em estradas
de nenufares
Mulher da guiné
amendoinha, fole, manga de terra
cabaceira, abacate, goiaba, veludo
- os sabores dos teus lábios
cabaceira, abacate, goiaba, veludo
- os sabores dos teus lábios
Mulher da guiné
mimoseas o andar
como o canto de uma voz eunuca
coqueiro balouçando ao vento
perfume de terra molhada
beijando a esplanada de areia branca de Varela
como o canto de uma voz eunuca
coqueiro balouçando ao vento
perfume de terra molhada
beijando a esplanada de areia branca de Varela
sorriso brando
corpo ébano
suando a maresia
és tu Mulher da Guiné
marcam-te o espaço na órbita
das três pedras do fogão
nos circuitos da lenha
no vai-vem da fonte
de - balde - em - balde
nos labirintos esquecidos da cozinha
querem-te domesticamente adormecida
das três pedras do fogão
nos circuitos da lenha
no vai-vem da fonte
de - balde - em - balde
nos labirintos esquecidos da cozinha
querem-te domesticamente adormecida
mas
segues os acordes
das melodias do teu chão
dos korás, e bombolons
dos djembés e dos nhanheros
- os teus caminhos
segues os acordes
das melodias do teu chão
dos korás, e bombolons
dos djembés e dos nhanheros
- os teus caminhos
Mulher da Guiné
corpo veludo sossego
musicado em sons de flauta
duas pequenas luas
explodindo na cara canseira
musicado em sons de flauta
duas pequenas luas
explodindo na cara canseira
asseda os tormentos
segue caminhando
e leva contigo a tua Guiné
a novos partos de sabura.
segue caminhando
e leva contigo a tua Guiné
a novos partos de sabura.
http://www.triplov.com/guinea_bissau/tony_tcheka/poemas/
Lusa língua
língua lusa minha
não sei se sonhas ó língua! sei, sim que deixas sonhar.
língua! lusa língua minha companheira é amiga, fraterna, e arauto.
rejeita espaços herméticos, fechados, limitados por falsas fronteiras. veste-se
literariamente de tendências universalistas.
e quando um dia transportada em caravelas foi impelida a sonhar com “novos mundos”
deixou-se conquistar. conquistámo-la! é ternuramente nossa.
anichou-se nos meus sonhos. sonha comigo e alimenta o calcanhar da minha terra
vermelha vestindo musas e amantes de muitos amores.
na sua mágica andança pelas novas “moranças” africanas aonde se instala, ora é ponte,
ora é chave para ganhar espaços dantes negados...
e ajuda o sonhar e falar e encantar e ser e ter.
lusa língua, minha ferramenta operária é o meu baú de sentimentos, enciclopédia viva
de tolerância. algures na costa ocidental da áfrica, mostra-se solidária, tolerante.
interpreta camões na lírica dança multirracial ritmada pelo som mediático do compasso
ancestral do bombolom. coabita criolizada e criadora e abecedária ao lado de mais de
duas dezenas de outras línguas, ali nascidas mas feitas almas gémeas ante a iminência
da construção de uma terra nova.
nas águas serenas do corubal a lusa língua sobe rio acima... e na parede alta do macaréu
sonha com o meu país que um dia será nação. ali, a lusa língua sonha com noites sem
insónias e sem bastões analfabetos molestando gente e abafando mentes ávidas de saber.
afinal língua, tu sonhas, interpretando sonhos que não dormem!
não sei se sonhas ó língua! sei, sim que deixas sonhar.
língua! lusa língua minha companheira é amiga, fraterna, e arauto.
rejeita espaços herméticos, fechados, limitados por falsas fronteiras. veste-se
literariamente de tendências universalistas.
e quando um dia transportada em caravelas foi impelida a sonhar com “novos mundos”
deixou-se conquistar. conquistámo-la! é ternuramente nossa.
anichou-se nos meus sonhos. sonha comigo e alimenta o calcanhar da minha terra
vermelha vestindo musas e amantes de muitos amores.
na sua mágica andança pelas novas “moranças” africanas aonde se instala, ora é ponte,
ora é chave para ganhar espaços dantes negados...
e ajuda o sonhar e falar e encantar e ser e ter.
lusa língua, minha ferramenta operária é o meu baú de sentimentos, enciclopédia viva
de tolerância. algures na costa ocidental da áfrica, mostra-se solidária, tolerante.
interpreta camões na lírica dança multirracial ritmada pelo som mediático do compasso
ancestral do bombolom. coabita criolizada e criadora e abecedária ao lado de mais de
duas dezenas de outras línguas, ali nascidas mas feitas almas gémeas ante a iminência
da construção de uma terra nova.
nas águas serenas do corubal a lusa língua sobe rio acima... e na parede alta do macaréu
sonha com o meu país que um dia será nação. ali, a lusa língua sonha com noites sem
insónias e sem bastões analfabetos molestando gente e abafando mentes ávidas de saber.
afinal língua, tu sonhas, interpretando sonhos que não dormem!
http://www.triplov.com/guinea_bissau/tony_tcheka/poemas/
Poemar
Fui à escrita
poemar
um flirt com a poesia
uma paixão gerada em sílabas
prenhes de ternura
o corpo não cede ao fogo
resta a poesia
e sou mais eu em ti
No presságio a palavra
palavra, que lavra
em safras de ardoamor
apocalipse de corpos
em procissão de amor
No lusco-fusco do crepúsculo
me encontro
vejo o fogo
nascer do iceberg
do teu corpo-mármore
A poesia ocorre
em plasmas de amor
vem com o calor-vermelho
que invade o corpo
em cortinas de suor
E fleuma do teu corpo-rosa
libertando ternura sonegada
em suspiros de madrugada morena
que pétalas de feitiço-crioulo
acalentam em seivas de amor.
Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do
Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e
Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial
Inquérito, 1990.
Querer cerzido
Vou-me divorciar
da arte
despir a árvore
folha a folha
saborear o fruto
bago a bago
e na raiz
saciar o desejo ilegítimo
Na esteira da vida
num querer cerzido
o poema nasce fêmea
Mulher é teu nome
apareces na noite
como a via láctea
cresces na madrugada
como o silêncio
para tormento
do poeta amordaçado
Na esteira da vida
és palmeira virgem
que a vida cedo há-de corroer
Devasso-me em procissões de amor
perverto o desejo e a querença
Num querer madrasta
a recusa é dorardor
sublimando a dor
Na esteira da vida
vou surribar o amor
em sofismas de buganvília
A poesia não cede
a rima cíclica se esvai
a paixão é dor miúda
silenciada
na sinagoga da vida
Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do
Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e
Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial
Inquérito, 1990.
Anti-racismo
Vou desfiar
a palavra
e fiar
que atrás
desse rosto
sem cor
lavado pela chuva miúda
a verdade
saltite gulosa
sem o abstracto da reticência
ou a exclamação teimosa
da negra noite
pasmada
com a ternura mansa
do sol vermelho
acariciando a madrugada indistinta
vou subir com a noite
devassa
explodir em cada minuto
da hora que passa
e viver a lucidez
da minha loucura
sem o arco-íris da imaginação
não quero o amargo da cor
porque traz a dor em fatias rácicas
com lascas de ódio
e eu. Assumindo-me
pleito. Todo em mim
recusarei a força da cor
distinguindo homens
diferenciando gentes
ó cor vaidosa
és mentirosa
e vou ordenar
que o vermelho
o preto
o branco
mais
a cor de burro quando foge
só sirvam
sem magoar
na tela imaginária
do poeta
todo ele
trepadeira sem fronteira
Bissau, 1985
Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do
Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e
Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial
Inquérito, 1990.
A prometida
Dóli só
Djena sem ninguém
do romance inocente
a tragédia bacilenta
papá homem grande
se meteu
uma vaca
um saco de farinha
um tambor de cana
umas folhas de tabaco
a permuta
a prometida
três
dias
depois
da lua
com fome de amor
boca acre não come
com sede de ternura
garganta seca rejeita água
as lágrimas engrossam
e rolam
no rosto macilento
Djena dezassete chuvas
Djena uma vida por viver
Djena a prometida
Djena mulher de hoje
tem fome
não come
tem sede
não bebe
corpo de mulher
inerte como o silêncio
firme como a recusa
repousa intacta
num sono inviolável
(in Vozes poéticas da lusofonia, Sintra,
1999)
Tecto de
silêncio
Ergo a minha voz
e firo o tecto de silêncio
nego a morte de crianças
porque há míngua de medicamentos
Na angústia
liberto o verbo
mordo o pólen da desgraça
que grassa
nesta África desventurada
em obra
e graça
Subdesenvolvendo-se
Coloco andaimes
nos alicerces do tempo
Perscruto os ventos
Circunciso as ondas
Nego a convivência da paciência
que amordaça a fala
e cala o sentimento
Exorcizo o paludismo
Apeio a poliomielite
Amputo a desgraça
e eis a graça da criança
florescendo a vida
E não te chamas
Cristo
Tens o crucifixo de muitas chuvas
cravado na palma da mão
com que matizas a terra
em tempos de kebur
Tempo finado
tempo fincado no peito da dor
disputando a sobra do cuntango
Tempo enlutado
tempo anoitecido
no entardecer da esperança
Na curvatura
do tambor onde expias o desespero
fizeram do teu corpo sepultura do medo
Negam-te o pedaço da tua tabanca
dão-te uma vida assalariada
taxam-te uns tantos por cento
para a sobrevivência autorizada
E não te chamas Cristo
e só pregas com o arado
Povo adormecido
Há chuvas
que o meu povo não canta
Há chuvas
que o meu povo não ri
Perdeu a alma
na parede alta do macaréu
Fala calado
e canta magoado
Vinga-se no tambor
na palma e no caju
mas o ritmo não sai
Dobra-se sob o sikó
como o guerreiro vergado
cala o sofrimento no peito
O meu povo
chora no canto
canta no choro
e fala na garganta do bombolon
Grei silêncio
quebrado
nas gargalhadas de Kussilintra
em quedas de água
moldando pedras
esfriando corpos
esculpidos
no corpo do bissilão
Globalizado
excluído
A
Carta
de
alforria
que
floriu
no templo
das proclamações
decretos
e
convênios
libertadores
murchou
desandou
como
a
flor
sahel
amnésica
ficou
sem
os
pergaminhos
globalizada
nos
grilhões
dos
novos
navios
negreiros
ressurge
sob formas
manhetas
manietada pelas
fronteiras farpadas
impostas por patriarcas ilusionistas
batutadores da escrita família
do comércio proteccionista de exclu$ão &
companhia Lda.
In: Guiné sabura que dói, União Nacional dos
Escritores
e Artistas de
S. Tomé e Príncipe, 2008.
Silabar a paz
RISCO
na folha
do teu corpo
azul
pergaminho
desta vida
cerzida
com fios
de tulipa
negra
espelho
que o mago
tingiu
GRITO
com a voz
de pedra
e sinto
os ventos
irromperem
das vértebras
da noite
ASSIM
tacteando
com as minhas
mãos
presas
ao umbigo
da vida
trespasso
a acidez
da loucura
em ponto final
SOLTO
todas
as vozes
silabando
a paz
com acentos
de liberdade
Batucada na
noite
Bissau cresce
quando o sol desce
vem com o fio da noite
e só adormece
quando amanhece
O álcool
e o week-end
inflamam corpos
cheios de adornos
Na noite
há insónias
e sónias de muitos nomes
não é só o mote
aqui há funky
há merengada
e antilhesas na madrugada
Lufadas de amor
moldam corpos
suarentos de ardor
há um saracoteio
permanente
na passarelle da noite
sedas flutuantes
coxas remexendo
num sincopado
que dá síncope
O odor
mastiga o ar
sem pudor mistura-se
confunde-se
catinga
chanel
paco rabane
água cheiro
suor
e dior
ça va comme ça…
O old scotch
dá o toque final
É fatal
afinal porque não…
A batucada cresce
abre o espaço
a cidade não dorme
Canto à Guiné
Guiné
sou eu
até
depois da esperança
Guiné
és tu
camponês
de Bedanda teimosamente
procurando
a bianda na bolanha
que só
encontra água na mágoa da tua
lágrima
Guiné
és tu
criança sem tempo de ser menino
Guiné
és tu
mulher-bidera
em filas de insónia
noites di kumpra pon
(mafé di aos)
Guiné
é um grito
saído de
mil ais
que
se acolhe n calcanhar
da terra adormecida
Mas
Guiné somos todos mesmo depois da
esperança
(Vocabulário:
Kumpra pon = noites de comprar o pão
Mafe di aos = a única alimentação/ conduto
Bidera = Revendedeira)
Imerecimento
Adormeço
na
luz
dos
teus
olhos
vejo
Veneza
que
não
conheço
na
luz
dos
teus
olhos
vejo
Veneza
que
não
conheço
Ondulo
num
círculo
de
ondas
de
levitação
num
círculo
de
ondas
de
levitação
Confesso:
não
mereço
a
ternura
da
gôndola
acariciando
as
águas
onda
a
onda
não
mereço
a
ternura
da
gôndola
acariciando
as
águas
onda
a
onda
http://guineletras.blogspot.com/2011/03/tony-tcheka-antonio-soares-lopes.html
Perdão
do poeta
Aqui das cordas
do meu korá
do meu korá
peço perdão
a quem o meu canto
fere
Acolá
jaz a esperança
do hino adiado
da palavra amansada
de vozes emudecidas
Além Pindjiguiti
Virou lagoa
com cisnes imaculados,
nenúfares e gente-bem
que vem
e se instala
sob o plasma
do meu sofrimento
e
Morés
espreitando
nas persianas do silêncio
Tony Tcheka, [Bissau.1979]
In
https://www.aelg.gal/resources/publications/12526604314112002_06.pdf
Refrão
da fome
Esse som
que chega
e me nega o sono
Não é choro
não é chuva
Mimoseando a terra ressequida
Não é pranto
nem sorriso incontido
É um gemido perdido
um choro sentido
mas não chorado
Choro…
Sufoco de menino
fere o conto de N’Gumbé
em refrão amargo
de fome.
Tony Tcheka, [1981]
In https://www.aelg.gal/resources/publications/12526604314112002_06.pdf
Nota biográfica:
Tony Tcheka foi diretor da Rádio
Nacional da Guiné-Bissau (RDN), chefe da redação e diretor do Jornal Nô Pintcha, tendo
criado um suplemento cultural e literário com o nome "Bantabá”. Como
jornalista, foi também correspondente e analista, tendo trabalhado com a BBC, Voz da
América, Voz da Alemanha, Tanjug
e, em Portugal, com a Agência Noticiosa Portuguesa (ANOP), com o
jornal Público, com a RTP África
e com a TSF.
Tony Tcheka foi um dos fundadores da Associação de Escritores da
Guiné-Bissau (AEGUI), tendo sido eleito vice-presidente da
associação. Colaborou na criação da União de
Artistas e Escritores da Guiné-Bissau (UNAE) onde desempenhou o
cargo de secretário executivo. Ajudou a criar e presidiu à Associação
Guineense de Jornalistas (AJGB) em Setembro de 1986.
Tem colaborado com diversas entidades reconhecidas
internacionalmente como UNICEF, Swedish Save
de Children, UNESCO,
IRIN (ONU) e IPAD
(Portugal) entre outras.
Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Tony_Tcheka
https://sibila.com.br/mapa-da-lingua/a-poesia-de-guine-bissau/2734
https://www.aelg.gal/resources/publications/12526604314112002_06.pdf
Embaló, Filomena. (2004). Breve resenha sobre a literatura da
Guiné-Bissau. In http://www.didinho.org/Arquivo/resenhaliteratura.html