"O último adeus de um combatente";"A luta é a minha primavera"; "Com um punhado de esperança" e outros poemas de Vasco Cabral



Este blogue pretende ser um lugar de divulgação da poesia guineense em português.

A poesia foi a primeira e, durante muito tempo, a única forma de expressão literária contemporânea da Guiné-Bissau.  Ela surge nos anos 1940 do século XX como poesia de combate, incitando à luta de libertação. 

Na sequência do último post, continuamos com a poesia de Vasco Cabral.

Considerado um dos poetas do seu tempo que mais alimentou o acervo literário do seu país, escolhemos para hoje começar com um poema muito conhecido e muito significativo para todos os guineenses.



O Último Adeus Dum Combatente



Imagem relacionadaNaquela tarde em que eu parti e tu ficaste
sentimos, fundo, os dois a mágoa da saudade.
Por ver-te as lágrimas sangrarem de verdade
sofri na alma um amargor quando choraste.

Ao despedir-me eu trouxe a dor que tu levaste!
Nem só o teu amor me traz a felicidade.
Quando parti foi por amar a Humanidade
Sim! foi por isso que eu parti e tu ficaste!

Mas se pensares que eu não parti e a mim te deste
será a dor e a tristeza de perder-me
unicamente um pesadelo que tiveste.

Mas se jamais do teu amor posso esquecer-me
e se fui eu aquele a quem tu mais quiseste
que eu conserve em ti a esperança de rever-me!



Vasco Cabral, A luta é a minha primavera, 1981
In Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos. Lisboa, Plátano Editora, 1989


Pode ouvir o poema declamado por Adilson Rafael, jovem poeta guineense.



Aproveitamos, ainda, para apresentar outros poemas de Vasco Cabral, alguns muito representativos da poesia independentista tão característica da sua geração, com temas como a liberdade ou o combate ao colonialismo, à escravatura e à repressão; outros ,nos quais transparecem as suas considerações sobre a poesia e a vida.


A luta é a minha primavera


A luta é a minha primavera
Sinfonia de vida
o grito estridente dos rios
a gargalhada das fontes
o cantar das pedras e das rochas
o suor das estrelas!
a linha harmoniosa dum cisne!
Vasco Cabral, A luta é a minha primavera, 1981
In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

Pode ouvir o poema declamado por Adilson Rafael, jovem poeta guineense.



Com um punhado de Esperança

Com um punhado de esperança
na mão
eu espalharei o calor
que há-de aquecer-te,
irmão!
Eu serei como o semeador
que lança a semente à Terra 
e a vê frutificar mais tarde.
A pouco e pouco morrerão a dor
e a dúvida.
E tu, como eu, irmão!, hás-de sentir a esperança!
Vasco Cabral
In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

Pode ouvir o poema recitado por Adilson Rafael, jovem poeta guineense.



Pindjiguiti

3 de Agosto
1959

Bissau desperta inquieta 
do sono da véspera.

Sopra o vento de morte 
no cais de Pindjiguiti!

E de repente
o clarão dos relâmpagos
o ribombar dos travões.

O meu povo morre massacrado
No cais de Pindjiguiti!

Um clamor de vozes
ameaças e pragas
fulmina o espaço 
num coro de impotência.

O meu povo morre massacrado 
no cais de Pindjiguiti!
Vasco Cabral, Janeiro de 1972
In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990


Pindjiguiti[1]



[1] Em agosto de 1959, os marinheiros e estivadores do Porto de Bissau, ao serviço da Casa Gouveia no cais de Pidjiguiti, entraram em greve, exigindo melhores salários e melhores condições de vida. A 3 de agosto, apesar da Casa Gouveia já ter aceite as reivindicações dos trabalhadores, o administrador do porto de Bissau, António Barbosa Carreira, entendeu que só daria seguimento à ordem quando entendesse, levando ao prolongamento da greve. Ainda hoje não se sabe com certeza qual a ação que levou ao primeiro tiro. Segundo relatos dos estivadores sobreviventes em 2015, pelas 15h45 desse dia um marinheiro, por nome Augusto, agarrou num barrote para se sentar. O cabo do mar Nicolau assustou-se, pensando que aquele lho iria atirar contra ele, disparando sobre o marinheiro. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (P. I. D. E.), o cabo do mar e outras forças suprimiram a greve, abrindo fogo sobre os grevistas. O tiroteio durou até às 18 horas. O número exato de mortos nunca chegou a ser conhecido, oscilando entre os quarenta e os setenta, e cerca de cem feridos.



Caleidoscópio

Um negro,
um branco
um forte abraço mútuo,
o mesmo alvo sorriso.
O pensamento: bandeiras verdes e brancas.

Um amarelo,
um negro,
destinos que se ligam,
o mesmo rubro sangue.
O pensamento: bandeiras verdes e brancas.

Um branco,
um amarelo,
um aperto de mãos,
a mesma dor humana.
O pensamento: bandeiras verdes e brancas.

Um negro,
um amarelo,
um branco,
o mesmo homem
em cores caleidoscópicas:
o mesmo alvo sorriso,
o mesmo rubro sangue
a mesma dor humana:
O mesmo pensamento: bandeiras verdes e brancas!
Vasco Cabral, 1957
In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990


Anti-delação

A noite veio, 
disfarçada em dia, 
e ofereceu-me a luz, 
diáfana como a Aurora

Mas eu disse que não.

Depois veio a serpente
disfarçada em virgem
e ofereceu-me os seios e os braços nus.

Mas eu disse que não.

Por fim veio Pilatos,
disfarçado em Cristo,
e numa voz humana e doce
disse: "se quiseres eu dou-te o paraíso
mas conta a tua história…

Mas eu disse que não,
que não, não, não!

E continuei um Homem!
E eles continuaram 
os abutres do medo e do silêncio.

Vasco Cabral, A luta é a minha primavera, 1981
In: Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos. Lisboa, Plátano Editora, 1989

Liberdade

Que vento sopra no coração dos homens?
Que angústia é
a pomba branca cruzando o espaço?
Que dor esmaga
a dor da alma dos oprimidos?
Que lágrimas
que ferida
que sangue escorre
tão lentamente
do leito infindo do mar da vida?
Em cada vento tu estás.
Em cada angústia a tua expressão clara.
E nas lágrimas
e nas feridas
e no sangue
e nos corpos
e nos êxtases
e no grito das virgens desfloradas
e a tua face vermelha e bela
espreita a esperança como um rosto de lua
Ó Liberdade!

Vasco Cabral, A luta é a minha primavera, 1981
In: Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos. Lisboa, Plátano Editora, 1989

A floresta pariu de novo

A floresta pariu de novo
Não os frutos
Não os ramos
Não os troncos
Nem as árvores gigantes.

A floresta pariu de novo
o cimento duma alma nova
a sinfonia da patchanga
e um cântico de liberdade!
Não os troncos
Nem as árvores gigantes.
Vasco Cabral, A luta é a minha primavera, 1981
In Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos. Lisboa, Plátano Editora, 1989

Progresso
Quantas vezes eu fico meditando 
à hora em que há silêncio e tudo dorme 
em como a Vida é uma batalha enorme
onde se uns perdem outros vão ganhando.

A luz do Pensamento foi brotando
dum ser, de início animal disforme.
Moldou o homem a matéria informe,
a têmpera do ferro a mão foi forjando!

A alma humana fez-se multicor. 
Os que aprenderam a pugnar na vida 
gritam ao tempo um brado, sem temor.

Se nunca a Esperança for perdida 
Homem! a Vida — esse grão de amor — 
será seara da terra prometida.

Vasco Cabral, A luta é a minha primavera, 1981
In: Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos. Lisboa, Plátano Editora, 1989

É este o meu destino
Caminhar 
caminhar sempre
caminhar num caminho aureolado de espinhos

Que importa?

Abre-te ó alma à criação de sóis 
para a Primavera da vida! 
uma vida pujante 
como um mar em revolta!
Caminhar 
caminhar sempre
para criar humanidade 
para criar a Humanidade!
Vasco Cabral, (22-6-1972)
A Luta é a Minha Primavera
In: Aldónio Gomes & Fernanda Cavacas, A literatura na Guiné-Bissau. Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997

Saudades dos que dizem adeus
Saudades dos que dizem adeus:
lágrima
voando, voando
como asa de brisa.

E longe
mas perto
o coração a bater, a bater...

Saudade dos que dizem adeus:
grito com eco
repercutindo no peito
em silêncio, em silêncio...

É dor
sem ser dor:
fogo que queima na alma.

Presença inefável
do vago.
Murmúrio da onda
que chega e parte
sem se mover.

Saudade dos que dizem adeus:
lágrima
voando, voando
como pássaro triste!

Vasco Cabral, (1957)
A Luta é a Minha Primavera
In: Aldónio Gomes & Fernanda Cavacas, A literatura na Guiné-Bissau. Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997


Onde está a poesia?

A poesia está nas asas da aurora
quando o sol desperta.

A poesia está na flor
quando a pétala se abre
às lágrimas do orvalho.

A poesia está no mar
quando a onda avança
e branda e suavemente
beija a areia da praia.

A poesia está no rosto da mãe
quando na dor do parto
a criança nasce.

A poesia está nos teus lábios
quando confiante
Sorris à vida.
A poesia está na prisão
quando o condenado à morte
dá uma vida à liberdade.

A poesia está na vitória
quando a luta avança e triunfa
e chega a Primavera.

A poesia está no meu povo
quando transforma o sangue derramado
em balas e flores

em balas para o inimigo
e em flores para as crianças.
A poesia está na vida
porque a vida é luta!

Vasco Cabral
In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990

Os poetas gostam de alinhar

Os poetas gostam de alinhar
Versos e mais versos
E construir Universos
De palavras.

Se o Universo

Se o Universo
coubesse
na linha de um verso
e se pudesse
transformar-se em prado
seria
uma felicidade
e também uma alegria
para a Humanidade

E em vez da guerra
só haveria a Paz
para todos o homem na terra!


Aos Poetas

Poetas! A vida é o melhor poema.
Faz do verso a charrua de mil braços.
Queremos ver a terra fecundada!

Vasco Cabral, 1957
In: Antologia poética da Guiné-Bissau, 1990


Desabafo

Oh! Que bom seria transformar
Os falcões em pombas
E fazer as pombas sorrirem na Primavera
Oh! Como gostaria eu
De beijar na boca a madrugada

E afagar com os meus dedos
os cabelos do futuro
para que a paz e a liberdade
fossem universais.

Fontes:
http://triplov.com/guinea_bissau/vasco_cabral/poemas/index.htm

https://www.conexaolusofona.org/escritores-guineenses/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Massacre_de_Pidjiguiti