A poesia de Pascoal d’Artagnan Aurigemma

Este blogue pretende ser um lugar de divulgação da poesia guineense em português.

No contexto da literatura pós-independência da Guine-Bissau, destacam-se as vozes de dois autores já falecidos e pouco conhecidos, embora excelentes representantes da literatura guineense: Pascoal D’Artagnan Aurigemma (1938-1991) e Jorge Cabral (1952-1994). Em Djarama e outros poemas (1996), de Pascoal Aurigemma, a paixão pela terra natal soma-se a seu amor à pátria vitoriosa e a seus heróis, em versos louvando as belezas concretas de seu país e glorificando de forma idealizada a resistência ao opressor. Sagrado é o chão que fornece o alimento material, sagrado é o chão embebido do sangue dos mártires e heróis. A celebração dos heróis e mártires passa a constituir metonímia do momento mítico fundador da própria nação. 

Resultado de imagem para djarama pascoal


Prato de fome
Uma mesa triste onde talher e tudo falta
p’ra vingar fome
Mão de alguém-menino
cvrre como esqueleto numa tigela de fome.
Alguém-menino
saído dum ventre feliz de parir.
Vida de amor de alguém-menino
talvez sonhando um futuro risonho
como tantas outras vidas sonharam.
Alguém-menino — alma simples
contemplando a certeza da revolução.
Nem pilão pila
colonial vida de pilão vazio.
Pascoal d’Artagnan Aurigemma, Bissau, Safim, 1973
Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito, 1990

Mãos

magras
desmazeladas
negras

mãos 
entregues à bolanha
ao pau de pilão

mãos
de canseira
abandonadas
na eterna lengalenga
do duro labor

mãos 
de inferno
condenadas
fuliadas
para lá
para aquele espaço
longe
onde basbaque
e canseira
e pobreza
formam sociedade

mãos pendidas no vácuo
mãos porcas
ah! desprezadas mãos!
Pascoal d’Artagnam Aurigema,  Poilão, Caderno de Poesias, 1997

Canção de criança
Vento forte
vento norte
lá vem a criança
na sua esp’rança.
Vento forte
vento norte
lá vem a criança
na sua pujança.
Da tabanca erguida
toda ela de vida
lá vem a criança
na sua embalança.
Lá vem a criança
na sua bonança
lá vem lá vem
saudar alguém.
Lá vem a criança
na sua esp’rança
lá vem a criança
na sua pujança.
Lá vem a criança
na sua bonança
lá vem lá vem
beijar a mãe.
Pascoal d’Artagnan Aurigemma, Ilha das Galinhas, 1967
Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito, 1990

Balantão
Careca de você
bem parece
coisa pelada.
Balantão
você é mesmo
ferro de gente.
Veja aquele olhar
cobiçando sua armação.
Não tema não
você é mesmo
ferro de gente.

no paraíso de sua morança
mocinha banga
espera você.
Quer dar você
tudo de seu.
Quer dar
seu corpo inteiro.
Balantão
não tema não. 
Pascoal d’Artagnan Aurigemma, Catió — Campo de aviação, Junho de 1 971
Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito, 1990

O cantor miserável da noite no cais
Eu sou o cantor miserável da noite no cais.
Estão ali
no cais
ansumane beco, infamará, bicinte cabupar, malam seidi, djodge
badiu, batipom cá
estão ali
uma data de anónimos
da noite no cais.
Barco veio: de onde?
Mar salgado saberia contar a história
de um gigante de vapor
que rompeu seu segredo
da Europa para cá.
Estão ali
uma data de anónimos
da noite no cais.
Para quê
aquela gente?
Gente para carrego de sacos fartos
e tantas caixas de whisky and coca-cola and beer
que o mundo galã há-de consumir
em noites diferentes
das noites no cais.
Irmão
eu sou o cantor miserável da noite no cais.
Porque no cais
encontro águas ensaudadas e mansas beijando estacas rogadilhas de
ostras calcárias
de bagres e barbos
de bentanas e esquilões
que menino pescador de cana e linha vai ali pescar.
Porque no cais
encontro o tronco forte do homem qualquer
untado de calor quente rolando corpo abaixo
como gotas de lágrimas amargas
espoliadas dum gesto forte de sofrimento longo.
Porque no cais
encontro a menina penina que não sabe viver para a seriedade
onde mastigaria — gulosa e galantemente —
outro pão de menos veneno.
Porque no cais
encontro o velho camarada que um dia
— levado pelo mar da revolta — tomou rumo naquele vapor tamanhão.
Ali aprendeu ele a abocar bem o cachimbo da esperança
e a dar riso franco ao mundo sórdido.
Porque no cais
encontro o ar erguido altivo e pantomineiro daquele patrão-mór
de olhar agudo e desconfiado
e do interessante fulano de tal
que manobra lindo seu guindaste «made in england»
Porque no cais
encontro migalhados: bicinte cabupar, djodge badiu, ansumane beco,
infamará,
malam seidi, batipom cá
e mais uma data de anónimos da noite no cais.
Barco veio: de onde?
Não interessa saber irmão
não interessa.
Se cais não houvesse
gente anónima não tinha no cais.
Nunca
nunca gente poderia ouvir
a história que mar salgado deveria contar.

Pascoal d’Artagnan Aurigemma, Bissau, Plubá
Março de 1975
Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito, 1990

O cantar miserável da noite no cais
...BARCO VEIO: DE ONDE?
NÃO INTERESSA SABER IRMÃO
NÃO INTERESSA.
SE CAIS NÃO HOUVESSE
GENTE ANÓNIMA NÃO TINHA NO CAIS.
NUNCA
NUNCA GENTE PODERIA OUVIR
A HISTÓRIA QUE MAR SALGADO DEVERIA CONTAR.
Pascoal D’Artagnan Aurigemma, poema inscrito num banco do jardim de Belém

Bilhete postal
Lela — meu irmão das outras terras —
daquelas ilhas
da dolente morna
     — manda-me a ressalva
         de tuas mantenhas.
Com o coração em mãos de bronze
com beijos em lábios calados
com canduras em olhares de luz
— Eu saúdo-te
Namorando a morabeza dos oceanos
fraternalmente somos África
Nem outra coisa
Pascoal d’Artagnan Aurigemma, Bissau, bairro de Sintra-Nema Novembro de 1983
Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito, 1990

Vitória Pátria

Porque napalm
estílhaçou infantes sorrisos
quebrou encantos
ruiu sentimentos.
Porque aglutinou amores
luzes de caminhos justos
Não vão as luzes amortalhar-se...
Porque napalm
entrou na tabanca sangrou sangue
fulminou aprumos
em homens cabeça pátria.
Porque dividiu plantéis
da abnegada raça
Não vão os sóis amortalhar-se...
Somos o destino intransigente
limiantes incólumes da poritada razão.
Partiram-se as algemas do imperial napalm.
Nem mais napalm.
Pascoal d’Artagnan Aurigemma, Bissau, cais do Pindjiguity, 1984
Antologia poética da Guiné-Bissau. Coordenação do Centro Cultural Português em Bissau e da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. Prefácio de Manuel Ferreira. Lisboa, Editorial Inquérito, 1990

O chapinhar do tempo
Tempo para nascer
e também tempo para viver
e morrer

É preciso tempo
para crescer nas coisas sérias
nas coisas mescladas de harmonia
tempo para amar a miséria
e as lágrimas derramadas
nos púcaros sagrados da esperança

É preciso tempo
para ser aquilo que não nos deixam ser
e também tempo para vencernos
as fadigas e indômitas teimas
vazadas em catadupas

É preciso tempo
para se provar à humana criatura
a nossa valia o nosso fervor
na castiça mas chata caminhada
marca vida

É preciso tempo
para se repudiarem
ódio e inveja
arrogância e altivez
e também tempo
para nos identificarmos
com os labirintos crassos
emergidos da dor incompreendida

É preciso tempo
para incondicionalmente
aliarmos os redondeis
e valermos nas tempestades
como também nas honras e lisonjas

Como o chapinhar do tempo
nós seremos e sempre
a filosofia garante do tempo presente.
Pascoal d’Artagnan Aurigemma, Bissau, 8 de Fevereiro de 1988

Revolta pátria

Os matres revoltados tingiram-se 
de sangue inocente

Varados pelas balas de carabinas monstras 
os corpos rolaram calados.

Os olhos tingiram-se  dedor 
as barrigas esquartejadas 
orfaram.

No mundo da tabanca escondida 
noite escura vulto sem sentinela.

As porfias  dacólera recrudesciam.

Cardeais horizontes estavam traçados
         os mortos também falam.
Pascoal d’Artagnan Aurigemma,
[3 de agosto de 1984. 25º aniversario do massacre de Pindjiguity]
In https://www.aelg.gal/resources/publications/12526604314112002_06.pdf


Fontes:
http://www.triplov.com/guinea_bissau/poetas/pascoal_d_artagnan/index.htm
http://literaturasafrikanas.blogspot.com/2016/01/pascoal-dartagnan-aurigemma.html
http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4324
https://www.aelg.gal/resources/publications/12526604314112002_06.pdf