“Poema de um assimilado” e outros poemas de Agnelo Regalla

Este blogue pretende ser um lugar de divulgação da poesia guineense em português.

Como já referido, o colonialismo, a escravatura e a repressão são denunciados na poesia da nova geração de autores que, como Agnelo Regalla, após a independência, apelam para a construção da Nação e invocam a liberdade e a esperança num futuro melhor (Embaló, 2004). O tema da identidade é abordado através de diferentes situações: a humilhação do colonizado, a alienação ou assimilação e a necessidade de afirmação da identidade nacional. Esta questão de identidade não é apresentada como um fator de oposição entre o indivíduo e a sociedade na qual evolui, mas antes é analisada como um conflito pessoal do indivíduo, que consciente do seu desfasamento cultural em relação à sociedade de origem, procura identificar-se com as suas raízes, da qual foi afastado pela assimilação colonial, sem se colocar em causa a pertença do indivíduo à sociedade em questão (idem).

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Vejamos o exemplo do poema de Agnelo Regalla, “Poema de um assimilado”.

Poema de um assimilado

Fui levado 
A conhecer a Nona Sinfonia, 
Beethoven e Mozart 
Na música, 
Dante, Petrarca e Bocácio 
Na literatura. 
Fui levado a conhecer 
A sua cultura… 
Mas de ti, Mãe África, 
Que conheço eu de ti 
A não ser o que me impingiram? 
O tribalismo, o subdesenvolvimento, 
E a fome e a miséria 
Como complementos… 
Não me falaram de ti 
E dos teus filhos, Mãe África. 
Esqueceram-se 
De Samory e Abdelkader, 
Cabral e Mondlane, 
Lumumba e Henda, 
Lutuli e Bem Barka. 
Não me falaram da revolução, 
De Canhe Na N’Tuguê e Domingos Ramos, 
De Areolino e Pansau, 
Mas falaram-me dos Bandas e Honorios, 
Dos que te esqueceram 
E fugiram 
À doce melodia dos Corás.

[Conakri-1973]


Apresentamos, ainda, outros poemas de Agnelo Regalla. 


Aquela lágrima de sangue
Aquela lágrima de sangue
Que te vi chorar, irmão,
Foi a paga que nos pediram
Para entrar no escalão dos Homens.
Aquela lágrima de sangue
Que te vi chorar, irmão,
É o produto da vida que levámos,
É o sangue contratado
Que embebedou a terra em que caiu,
É o sangue envergonhado
Que nos fez considerá-los medida-padrão
É o sangue que juntaram ao seu
Para escarnecerem depois.
Aquela lágrima de sangue
Que te vi chorar, irmão,
É o sangue da revolta
Que nos anima os gestos
É o sangue da pureza
Contida na nossa desconhecida cultura,
É o sangue da liberdade
A ferro e fogo
Agnelo Regalla, Antologia Poética da Guiné-Bissau, Editorial Inquérito, 1990

O Eco do Pranto
Não me digas
Que essa é a voz de uma criança
Não...
A voz da criança
É suave e mansa
É uma voz que dança...
Não me digas
Que essa é a voz de uma criança
Parece mais
Um grito sem esperança
Um eco
Partindo de fundo de um beco
Não me digas
Que essa é a voz de uma criança,
Essa é doce e mansa
É uma voz que dança...
Esta parece mais
Um grito sufocado sob um manto
- O Eco do Pranto.
Agnelo Regalla, Antologia Poética da Guiné-Bissau, Editorial Inquérito, 1990

Mulher
Sombra fugidia
Que me abraça
E me trespassa
O coração magoado
Flor de fantasia
Que no meu enfado
Enfeita meu sonho alado
És tu mulher...
Companheira na vida
Compartilhando
Essa alegria reprimida
Num beijo de despedida.
Agnelo Regalla, Antologia Poética da Guiné-Bissau, Editorial Inquérito, 1990

Se um dia
Se um dia
Dos teus lábios suaves
O sorriso lentamente se apagasse,
E a tua voz que me afaga
Morresse silenciosa
Qual voo de um pássaro
No horizonte
Se de teus olhos amêndoa
Nascesse uma só lágrima
De tristeza
Rolando em teu rosto
De menino de savana
A revolta contida em meus braços
Apunhalaria
O mais profundo das entranhas
Do racismo mascarado
E da sua morte
Nasceria uma flor
Em madrugada de sereno
Que tuas mãos colheriam
No gesto simples
De me acarinhares.
Agnelo Regalla, Antologia Poética da Guiné-Bissau, Editorial Inquérito, 1990

Flor nocturna
Flor nocturna
Que com a lua
Desabrochas em meus braços
Flor soturna
Que pelas sombras da rua
Guias teus passos,
Flor amiga
Com pétalas de estrelas
E résteas de luar
Deambula noctívaga
Pelas vielas
E vem-me abraçar.
Agnelo Regalla, Antologia Poética da Guiné-Bissau, Editorial Inquérito, 1990

Amar
Amar
É o mesmo que escrever
Docemente,
Amargo,
Mas incompleto.
Agnelo Regalla, Antologia Poética da Guiné-Bissau, Editorial Inquérito, 1990

Átomo
Vi uma criança
Dobrar-se inocente
Sob o peso da bomba.
Vi o átomo
Desagregar-se em morte
E cobrir em cogumelo
A Humanidade,
E lágrimas de sangue
Ergueram-se
Em ogiva
Sobre o deserto,
E lá longe,
Uma pomba branca
Que sobreviveu
Sem arca e sem Noé
Chorou a loucura do Homem. 
Agnelo Regalla, Antologia Poética da Guiné-Bissau, Editorial Inquérito, 1990


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Nota biográfica:
Agnelo Regalla nasceu em Campeane (Tombali), na Guiné-Bissau, a 9 de julho de 1952. Formou-se em jornalismo no Centro de Formação de Jornalistas em França. Fundou e dirigiu a Radiodifusão Nacional na Guiné-Bissau de 1974 a 1977 e em 1996, fundou a Rádio Bombolom FM.
Foi Diretor-Geral no Ministério dos Negócios Estrangeiros de 1987 a 1990 e secretário de estado da informação do Ministério da Informação de 1984 a 1985 e de 1990 a 1991. Foi presidente do partido União para a Mudança (UM) e foi eleito deputado pela UM no primeiro parlamento multipartidário de 1994 a 1998.
Entre setembro de 2009 e janeiro de 2012, foi conselheiro de comunicação e de porta-voz do presidente da Guiné-Bissau Malam Bacai Sanhá. Em 2018 foi nomeado por Aristides Gomes para a Presidência de Conselho de Ministros e Assuntos Parlamentares.
Agnelo foi um dos fundadores da Associação de Escritores da Guiné-Bissau em 10 de outubro de 2013.
Não editou nenhuma obra individualmente, mas os seus textos foram publicados em diversas antologias.

Fontes:


https://pt.wikipedia.org/wiki/Agnelo_Regalla
https://www.didinho.org/agneloregallabografia.htm

Couto, Hildo Honório do ; Embaló, Filomena. (2010). “Língua, literatura e cultura na Guiné-Bissau, um país da CPLP”. PAPIA, revista brasileira de estudos crioulos e similares [Em linha], nº 20. Brasília: Editora Thesaurus. [Consult. mai. 2019]. Disponível em http://abecs.net/ojs/index.php/papia/article/viewFile/341/362.
Embaló, Filomena. (2004). Breve resenha sobre a literatura da Guiné-Bissau. In http://www.didinho.org/Arquivo/resenhaliteratura.html